Eu, Mamãe & Nosso Relacionamento Abusivo ( Por Raquel Gonçalves - 8 de dezembro de 2017)





É mãe, quem diria que um dia eu teria coragem suficiente para assumir a mim mesma que nosso relacionamento (se é que pode-se chamar assim) é um abuso da sua autoridade e da minha paciência.
Você e seu jeito sutil de impor coisas através da ideia de que caso não o fizesse, perderia seu amor. Quantos gritos ouvi, quantas palavras de ódio, quantas ameaças e palavrões adentrando meu peito como uma adaga que perfura a alma, e consegue fazer meu amor próprio ir pelo ralo. Mas nunca foi por mal, não é mesmo, mãe? Sempre foi por amor. Sempre foi porque você queria me proteger do mundo e suas garras.
Estive lembrando noite passada de como você me prendeu numa jaula da mesma forma que a madrasta de Rapunzel a prendeu naquela alta torre. Você cortou meus cabelos quando não me permitiu correr atrás de meus sonhos; prendeu-me numa torre quando bradou aos quatro ventos que eu deveria permanecer naquela casa para cuidar de você caso estivesse doente, e cegou todos os príncipes que se aproximaram com a acidez de suas palavras sobre como eu era uma relaxada que não daria conta de cuidar de marido e filhos.
E aí vem outra questão: de onde você tirou a ideia de que minha vida resume-se a buscar um bom casamento? Mãe, eu nasci para conquistar o mundo, e não para ser conquistada por ele. Desculpa se isso é o fel que amarga sua garganta, mas é verdade. Talvez por isso você sempre tenha tentado de toda forma me fazer desistir; deve ser insuportável perceber que a menina educada para ser princesa, dona de casa, bela, recatada e do lar, nasceu para ser guerreira, dona de si, linda, espontânea e do bar. 
O que mais quis foi ter com você um laço de amizade. Gostaria de poder lhe contar sobre minhas dúvidas, incertezas, dores e desejos, mas como fazê-lo se a cada palavra recebia de volta a rispidez de frases que diziam que eu era incapaz, frágil e não chegaria a lugar algum na vida? Como ter por melhor amiga alguém que aparentemente torce por meu fracasso? Desculpa mãe, mas você é a responsável pelo abismo existente entre nós.
Ainda na infância você já evidenciava seu narcisismo; se meu pai sorria a me ver, você reduzia a expressão a uma carranca, e se ele me trazia um presente, prontamente você questionava sobre o seu. Se meus avós me bajulavam, você me mandava ficar no quarto, longe das visitas, e se era elogiada na escola, logo ouvia-lhe enaltecer a boa educação recebida de ninguém menos que você mesma. Você sempre se pôs em primeiro lugar, e tentou de toda forma abafar meu brilho; talvez por eu ser uma garota, talvez por ter projetado em mim suas frustrações, talvez por não haver desejado a gravidez… Talvez por perceber desde cedo que me prendendo só daria ainda mais impulso às minhas vontades.
Então mãe, hoje eu vim expor umas verdades e agradecer por outras. Vim tomar um café olhando meu reflexo no espelho, enquanto vejo as marcas físicas e interiores deixadas pela sucessão de desaforos e afrontas recebida diariamente.
Mãe… mamãezinha querida. Obrigada pelo menosprezo, e por avisar todos os vizinhos sobre minhas roupas jogadas no chão. Obrigada por não se despedir de mim quando eu saía porta à fora para trabalhar enquanto você dizia que eu deveria ficar em casa lhe ajudando. Foi chorando no trajeto que percebi que teria de lutar muito para chegar onde queria. Foi me sentindo só que descobri que a solidão pode ser um massacre ou um álibi, tudo depende da sua força de vontade.
Obrigada por dizer que eu era feia por estar gorda, e ainda mais feia por haver emagrecido. Obrigada por rir das feridas em minha pele, e também do meu novo corte de cabelo. Obrigada por dizer que não sei me vestir, e por fazer questão de mostrar às visitas meu tênis sujo. Ouvindo suas palavras aprendi a melhor me arrumar, e a amar cada centímetro meu (na marra). Aprendi que não importa o que pensem de mim, o que vale é estar bem comigo mesma, e dessa maneira me tornei uma moça linda, mesmo que você nunca vá assumir isso.
Valeu mesmo por reclamar constantemente do peso de ter se casado com meu pai, e por sempre que possível esfregar em minha cara que além de ter se casado você foi engravidar. Obrigada por ressaltar o quanto é desgastante ser mãe e esposa. Mas sabe, hoje sei que na verdade você não queria ser mãe; bastava-lhe ter filhos. Você não quis ser esposa; queria apenas ter um casamento. Você nunca quis assumir uma tarefa mãe, você apenas gostava de atuar.
Que você seja recompensada por desmoronar com minhas conquistas, e por tentar a todo custo me fazer abrir mão de ser a mulher que sempre sonhei. Cada palavra dura, cada desaprovação, cada enxurrada de lágrimas choradas sozinha em meu quarto, ou na rua, no ônibus, na faculdade e até mesmo no banho lavaram-me a alma e fortaleceram para o que ainda estava por vir. Seu azar foi pensar que assim como você eu não era capaz de aguentar um terremoto; enquanto você se abala com tremores de terra ou danço em meio ao fogo, logo, nada me assusta.
Parabéns mãe por durante todos os anos desmoronar com minha autoestima e por não apoiar nenhuma de minhas escolhas. Parabéns por me fazer acreditar que se não seguisse à risca seus ensinamentos não seria digna de seu amor. Eu corri atrás de uma sombra de aprovação com a mesma ferocidade que um leão persegue sua presa. Até que um dia percebi que estava correndo atrás do vento, ou seja: eu nunca iria alcançar meu objetivo. Quando se ama, ama-se ao primeiro olhar, e não ao último esforço.
E quando me dei conta disso, deixei de subir sua escada que cada dia era mais íngreme e escorregadia. Percebi que mesmo que subisse ao último degrau ainda não seria o que você sonhou, e não apenas porque você exigia de mim algo muito grande, mas principalmente porque por você mãe, eu estava me tornando tudo o que não queria ser.
Então mãe, obrigada. Obrigada mesmo. Obrigada por seguir tão bem seu próprio plano que acabou cega e não percebeu que nosso “relacionamento” era o combustível de minha revolta. Obrigada por não se dar conta de que dentro de sua menininha há um mulherão, e isso nem mesmo você pode mudar. Saiba que logo você me verá conquistando tudo aquilo que você rogou dizendo que não serei capaz, e que ficarei feliz vendo mais uma vez seu olhar de lamento e desaprovação, por que, infelizmente, isso é o máximo que consigo de você.
Fique tranquila, apesar das marcas não carrego mágoas em meu coração. Vendo suas atitudes percebi que sou bem mais que isso, e que coisas ruins bastam às que já enfrentei. Continue com sua vida e que eu continuarei insistentemente conquistando a minha. E se um dia for mãe, farei o possível e o impossível para todos os dias entregar aos meus filhos o amor que tanto quis ter.
Mais uma vez mãe, obrigada. Principalmente por ser meu primeiro relacionamento abusivo, e com isso me preparar para suportar e abolir os demais que ainda viriam, consequentes dos seus abusos que outrora eu chamava de amor.

Retirado do site Fãs da Psicanálise
"Esta carta é um desabafo, que pode representar um grito de todas as filhas de mães que apresentam Transtornos Narcisistas Patológicos. Vivemos numa sociedade que iguala a palavra MÃE À PALAVRA AMOR. Enquanto isto, muitas filhas adultas sofrem em silêncio pela vergonha de não se sentirem a altura de serem amadas por suas mães. Ditados como: " Toda mãe é igual , só muda o endereço" é extremamente cruel e generalista. Pessoas que foram vítimas de mães narcisistas não se devem sentir culpadas por não atender as expectativas desta sociedade que cobra a perfeição da família. Maiores esclarecimentos e se você se identifica com trechos desta carta. Busque ajuda terapêutica. O livro Prisioneiras do Espelho, um guia de liberdade para filhas de mães narcisistas da autora Michelle Engelke, como o próprio título diz, é um manual de ajuda para filhas que sofreram abusos emocionais durante toda a vida e hoje, desejam libertar-se."
Iracema Correia

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